Logun Edé é cantado na Unidos da Tijuca como “orixá menino que velho respeita”, “inquieto e intenso”. A Viradouro apresenta a entidade Malunguinho tal qual um mensageiro de três mundos. E o Salgueiro se paramenta de símbolos para se ter o corpo fechado, protegido espiritualmente. São alguns dos temas que abrem alas a um Carnaval 2025 na Sapucaí em que a religiosidade e as personalidades ligadas à cultura afro-brasileira predominam: são centrais nos Enredos de dez das 12 escolas do Grupo Especial. Há referências super populares. Outras, desconhecidas da maioria. Mas todos esses Desfiles abordarão Entidades cultuadas dentro e fora do Rio, rituais que fazem parte da fé de milhares de pessoas e histórias e mitos que ajudam a contar a formação do Brasil.
Numa área cercada de verde no bairro Cobrex, em Nova Iguaçu, por exemplo, uma grande casa amarela — de cerimônias quase sempre restritas — abriga o Terreiro de Candomblé Ilê Asé Odé Omi Tutú, um dos que celebram Logun Edé. É o frequentado pela Cantora Anitta, regida pelo orixá e filha de santo do Babalorixá Sérgio Pina, sacerdote do lugar. Uma relação que a motivou a concorrer (e vencer) a disputa de Samba da Tijuca, tão logo que soube que a Agremiação do Morro do Borel teria a divindade como tema.
Assim como a estrela da música, Hugo Pina é filho de Logun Edé há 24 anos. Aos 30, o rapaz diz se identificar com o Orixá por ter características semelhantes às dele (o que é um dos modos de definir de que Entidade uma pessoa é filha; um outro é através do jogo de búzios).
— Sou alegre e espontâneo. Gosto de brincar, mas também não levo desaforo para casa — define-se Hugo.
Logun Edé, explica ele, é jovial e representa, em seu arquétipo, a beleza. Na maior parte dos terreiros de candomblé em que é cultuado, o orixá carrega nas mãos, quando manifestado em seus filhos, um ofá — arco e flecha que representa a caça de Oxóssi — e um abebé — tipo de leque espelhado, usado pelos orixás femininos Oxum e Iemanjá. Entre suas cores de preferência, prevalecem o azul-turquesa — relacionado ao pai, Oxóssi — e o dourado — de sua mãe, Oxum. Detalhes que estão todos no samba de Anitta para Tijuca, é só prestar atenção na letra.
Mesas de Jurema
Já na atual Campeã do Carnaval, a Viradouro, Fantasias e Carros Alegóricos deste ano serão dedicados a transmitir as histórias do Malunguinho, Líder Quilombola que nunca foi preso e, segundo a tradição, continua vivo, protegendo seus seguidores nas Mesas de Jurema, onde é evocado no começo das cerimônias. O Carnavalesco da vermelho e branco, Tarcísio Zanon, conta que a ideia de exaltá-lo na folia nasceu de uma pesquisa feita no período da pandemia, sobre a Jurema Sagrada, um culto que mistura elementos afro-ameríndios mais conhecido no Nordeste brasileiro.
— Na década de 1990, o Professor Marcos Carvalho descobriu no arquivo público de Pernambuco a existência, de fato, desse Líder Quilombola, desse grande herói. A gente resolveu ir para Nordeste investigar melhor. E conhecemos o Professor João Monteiro, que também é Pesquisador do Malunguinho e juremeiro — conta Zanon sobre o processo para conceber o Enredo.
No Rio, a divindade também tem adeptos. No Centro Cultural de Jurema Tradicional, em Guaratiba, na Zona Oeste da capital, Gil D. Holder, de 79 anos, é Mestre juremeiro. Ele reitera que o culto ao Malungo (nome de origem banto) surgiu em Pernambuco. Era um africano que veio para o Brasil trazido num navio negreiro. Em solo nacional, virou Malunguinho, que quer dizer companheiro, e andava nas matas soltando os escravizados.
— Ele é um caboclo. Não é Exu nem orixá — diz, defendendo que Jurema não é religião, mas ciência ancestral.
Mitos desfeitos
O Mestre explica que o seu Centro é um dos raros no Rio em que se cultua o Malunguinho da maneira tradicional, como faziam os indígenas. Sua representação, no local, não é por meio de uma imagem, mas de um pequeno tronco da jurema (a árvore) e um chapéu de palha. Uma das características do culto é o uso do cachimbo e sua fumaça, além da bebida (vinho e cachaça), e dos cânticos.
— Malunguinho é uma energia indígena muito forte — define o juremeiro.
E a Viradouro não é a única vermelho e branco que se prepara para chegar energizada à Avenida este ano. Como aponta o título do Enredo, a outra é o “Salgueiro de corpo fechado”, cujos tambores vão tocar para explorar a relação humana com a busca por proteção espiritual. Sobre a temática, Pai Paulo do Logun Edé, do Terreiro Sítio São Miguel Arcanjo — Ilê Axé Ode Bioman, em Nova Iguaçu, trata logo de esclarecer uma dúvida comum: ao contrário do que muitos imaginam, o ritual de fechamento de corpo não tem relação com o livramento da morte.
— Há quem ache que quem tem o corpo fechado não morre, não vai ser atingido por um tiro, por exemplo. Mas a magia é para livrar a gente dos problemas espirituais. É uma proteção, uma blindagem para a falta de sorte, o mau-olhado ou perseguição dos inimigos — afirma ele, ao lembrar que os rituais podem envolver banhos, ebós (oferendas) e, em alguns casos, para iniciados em algumas religiões de matriz africana, marcas no corpo como blindagem.
Pai Paulo derruba ainda outro mito. Os rituais de fechamento de corpo, ressalta ele, tampouco são uma exclusividade das religiões de matriz africanas, sendo feitos por indígenas, pela maçonaria e até pelos budistas.
Os Enredos de 2025, porém, ensinam ainda mais. De volta ao Grupo Especial após cinco décadas, a Unidos de Padre Miguel leva ao Sambódromo “Egbé Iyá Nassô”, que contará a trajetória da africana Iyá Nassô e do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, na Bahia, conhecido como o mais antigo templo afro-brasileiro ainda em funcionamento. O carnavalesco Alexandre Louzada, que assina o desfile da agremiação junto com Lucas Millato, conta sobre as sensações que teve ao conhecer o lugar:
— Nossa visita ao Terreiro foi a consagração de que estávamos no caminho certo. Na ocasião, recebemos a bênção da Ialorixá regente e de suas sacerdotisas. Em um ritual privado, fomos acalentados com uma confirmação do orixá (para seguir com desenvolvimento do Enredo). De lá para cá, tivemos sempre a orientação dos Membros da Casa.
Ainda dentro dos temas envolvendo religiosidade este ano, a Imperatriz cantará “Ómi Tútu ao Olúfon — Água fresca para o senhor de Ifón”, sobre a saga de Oxalá no reino de Oyó para visitar Xangô. E a Acadêmicos do Grande Rio leva para a Sapucaí “Pororocas parawaras: as águas dos meus encantos nas contas dos curimbós”, que propõe um mergulho nas águas amazônicas e na cultura do estado do Pará por uma ótica afro-indígena.
Combate ao preconceito
Para João Vitor Silveira, Enredista da Unidos de Vila Isabel — uma das poucas Escolas que fugiram do tema afro e que virá com o Enredo “Quanto mais eu rezo, mais assombração aparece” —, religiosidade sempre esteve ligada ao Carnaval.
— Desde sua origem, as Escolas falam sobre as religiões de matriz africana, seja através dos Enredos ou por meio da forma como as Bterias tocam. Muitas fazem toques para louvar os orixás e as raízes africanas. Mas ter tantas Agremiações abordando o tema é uma maneira interessante de difundir essa informação — avalia.
O Carnaval e os Enredos com temática relacionada a religiões de Matriz Africana também ajudam a combater preconceitos, na avaliação do Enredista. Ele cita como exemplo o Enredo “Fala Majeté! Sete chaves de Exu”, que deu o título à Grande Rio em 2022 e contribuiu para desmistificar o Orixá, que no Carnaval deste ano é citado nos Sambas-Enredos de várias Escolas, como Viradouro, Imperatriz Leopoldinense, Salgueiro e Beija-Flor — esta última que homenageará em 2025 uma das grandes personalidades negras de sua história, o Diretor de Carnaval e Carnavalesco Laíla, que será tratado no Desfile como um griô, ou seja, um sábio, que guarda as memórias de seu povo.
— Cada vez que as Escolas se debruçam sobre essa temática é um passo a mais na direção de uma sociedade que compreende e aceita as diferenças — conclui Silveira.
Foto: Domingos Peixoto