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Blocos cariocas tradicionais se despendem da Folia de rua diante de exigências para Desfilar e de novos comportamentos

Chegou a hora derradeira. No dia 15 de fevereiro, o último Desfile do Imprensa Que Eu Gamo, em Laranjeiras, encerra três décadas de uma história de amor e dedicação ao Carnaval que começou numa reunião de jornalistas num bar do Mercadinho São José, num processo de repaginação, assim como a festa de rua do Rio. Blocos tradicionais como esse, o Escravos da Mauá — encerrado em 2022 — e o Bloco de Segunda, que teve fim em 2023, abrem alas para um movimento que vai crescer. Em 2026, será a vez de o Suvaco do Cristo guardar os instrumentos. Antigos grupos findam seus ciclos, dão lugar a adeptos de novas formas de fazer Folia ou sucumbem ao excesso de regras do “Carnaval Oficial”.

Em Bangu, na Zona Oeste da Cidade do Rio de Janeiro, um dos Blocos mais tradionais da Folia Carioca, o Queima de Bangu (fundado em Janeiro de 1957) também enrolará sua bandeira devido ao descaso dos governantes e apoio do comércio local

— As dificuldades são inúmeras, a começar pelas burocracias que foram aumentando ao longo do tempo. Virou quase uma gincana a gente cumprir todos os quesitos e requisitos de Bombeiros, Polícia Militar, Polícia Civil… Então, a questão burocrática apertou e se tornou menos condizente com o carnaval de rua — lamenta Rita Fernandes, presidente do Imprensa Que Eu Gamo e da Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul, de Santa Teresa e do Centro (Sebastiana).

Segundo a jornalista, com quem fazem coro outros produtores culturais, a dificuldade na obtenção de patrocínios também enfraqueceu os cortejos.

— Está cada vez mais difícil. Existe um modelo da prefeitura que tem imposto multas às empresas que decidem patrocinar os blocos de rua que não fazem parte do cardápio de patrocinadores oficiais. Isso restringiu o acesso a qualquer tipo de patrocínio, criando monopólio e exclusividade para a prefeitura e para a empresa que fazem o carnaval oficial — frisa Rita.

Imprensa Que Eu Gamo vai deixar de desfilar no Rio — Foto: Brenno Carvalho
Imprensa Que Eu Gamo vai deixar de desfilar no Rio — Foto: Brenno Carvalho

Os organizadores oficiais do Carnaval de rua do Rio são a prefeitura, a Riotur e a Dream Factory, empresa ganhadora do edital para se responsabilizar pela infraestrutura da festa, o que inclui da contratação de banheiros químicos à divulgação publicitária.

Outro argumento de produtores culturais de fora do eixo Centro-Sul é que muitas das marcas, de olho na exposição nos pontos turísticos mais explorados comercialmente — entre eles as praias da Zona Sul e os museus da Zona Portuária —, perdem o interesse em anunciar em cortejos que animam as zonas Norte e Oeste.

Dever cumprido

São sexagenários ou septuagenários muitos dos organizadores de blocos que com energia e desejo de transgredir e de se manifestar saíram às ruas mais de três décadas atrás, num período em que o país vivia seu processo de redemocratização.

— Pouco antes daquela época, o carnaval estava dentro dos clubes. Quando veio a abertura (redemocratização do país), existia essa coisa de ocupar as ruas — lembra Ricardo Costa, fundador do Escravos da Mauá, criado por ele e outros funcionários do Instituto Nacional de Tecnologia, perto do Cais do Valongo.

Da parte dos fundadores, existia ainda um desejo de chamar atenção para a riqueza cultural dos arredores da Praça Mauá e do entorno do Cais do Valongo, no pós-ditadura, na época abandonado e desde 2017 reconhecido como Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) pela sua importância histórica.

Para o engenheiro, ao longo dos últimos anos e, sobretudo, com a sociedade com mais letramento racial, os territórios foram recuperados, assim como os lugares de fala e de cultura reapropriados pela população negra.

— Se essas vozes têm força, é mais importante que elas falem — diz o presidente, que lembra: — Paramos com alegria. Vivemos um ciclo feliz. Aquele lugar tinha uma riqueza submersa. Surgiram protagonismos que a gente quer muito bem e que nos levam a crer que é o momento de encerrar o ciclo.

O mais longevo entre os retirantes do carnaval, o Suvaco do Cristo, que desfila no Jardim Botânico há 39 anos, arrastou 50 mil pessoas em 2001, e sairá pela última vez em 2026, quando será um quarentão.

Bolsas podem até fazer parte do look da fantasia, como os amigos no bloco Suvaco do Cristo, mas exigem cuidado redobrado em meio a multidões para evitar furtos — Foto: Gustavo StephanRiotur/Divulgação
Bolsas podem até fazer parte do look da fantasia, como os amigos no bloco Suvaco do Cristo, mas exigem cuidado redobrado em meio a multidões para evitar furtos — Foto: Gustavo StephanRiotur/Divulgação

— Cumprimos uma missão: o nosso papel de ser um dos blocos reconhecidos como um dos que reativaram o carnaval de rua do Rio naquele período — diz o médico João Avelleira, de 71 anos, presidente do Suvaco, que vibra das arquibancadas com os novos movimentos de blocos livres pela cidade: — A moçada vai mudando sua concepção de bloco. A vida é assim. Quem fica parado é poste. É claro que não se pode fechar todas as vias e causar um prejuízo social, a ambulância não passar, a Comlurb não chegar… Mas é uma manifestação popular. As manifestações populares não têm burocracia.

Mudança de perfil

O jeito como os grupos formavam blocos no fim dos anos 80 tem peculiaridades e contrasta com o que acontece na contemporaneidade. Lidia Pena, presidente do Bloco de Segunda, encerrado em 2023, lembra que o cortejo veio de uma ideia de amigos da praia que decidiram protestar no Feriado da Independência de 1987.

— O nosso primeiro desfile foi num Sete de Setembro, para protestar contra a política vigente. Era um grupo de amigos de esquerda, insatisfeitos com o que acontecia. Apareceram vários amigos, entre eles o Chico Alencar, o Milton Temer, o Eliomar Coelho — lembra a jornalista.

O formato descompromissado, antes símbolo do grupo, foi nos últimos dez anos se dobrando às exigências formais das autoridades.

— Esse “de segunda” era porque não correspondia à formalidade. Exatamente o que a gente não queria foi o que nos foi exigido no fim.

Parceiro do Escravos da Mauá, do Bloco de Segunda e do Suvaco do Cristo, o ex-mestre de bateria da escola da Série Prata Mocidade Unida do Santa Marta Filipão Cassiano, de 69 anos, lembra que era afiada a parceria dos dirigentes de blocos com os ritmistas. Foi através deste contato que músicos de comunidades alcançaram a profissionalização e a possibilidade de obter renda não só no carnaval.

— No carnaval, quando eu era mestre de bateria, eram pelo menos 50 ritmistas de comunidades mais 20 baianas que eram pagos para tocar. Por causa do Suvaco do Cristo, o pessoal da bateria conseguiu tirar a carteira da Ordem dos Músicos, muita gente conseguiu trabalho — lembra Filipão.

Lucro e competitividade

Bom conhecedor da cultura carioca de raiz, Filipão diz perceber que o mercado do carnaval e os trabalhos no samba estão bem mais disputados depois que governo e empresas perceberam que a festa do povo era lucrativa. Além disso, uma maior profissionalização das escolas de samba escasseou as oportunidades para quem não se preparou para competir.

— As escolas de samba começaram a fazer o que eu faço: casamentos, formaturas. Antigamente, tinha muito trabalho. Agora não tem porque surgiram muitos blocos, muitas pessoas perceberam o que dava para fazer. Hoje tem muito bloco e muita gente ganhando dinheiro.

O lamento toma conta de foliões cuja história de vida e da família se confundem com a do bloco.

— No nosso último desfile, uma mulher foi até nós com a filha adulta dizendo que acompanhou o bloco desde que ela estava na barriga. É emocionante — lembra Lidia Pena.

Filipão lamenta quando se refere aos laços afetivos com amigos e ao estandarte:

— É desagradável porque, além de a gente tocar, tem amor e carinho. O que nos alegra é que existe a possibilidade de o Suvaco virar um grupo e tocar samba nos clubes e em outros lugares.

Por Thayná Rodrigues

O Globo

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